THEORY
MASTERCLASS

ANIMAÇÃO, CINEMA & CINEMA DE ANIMAÇÃO

Poética da transformação

Por comparação com a filmagem de imagem real, uma das especificidades da animação, sobretudo da animação gráfica, é o seu abandono da analogia com o mundo real para encenar um mundo particular, com regras, códigos e leis próprias (em parte ditadas pelas suas ferramentas), numa proposta visual singular, imaginária, específica do seu criador.

É claro que os brinquedos ópticos, ou o Teatro Óptico de Emile Reynaud, precedem a invenção do cinema, e a animação não precisa imperativamente de ter uma câmara – riscar sobre a película, flip book, gif animado…

 

Podemos considerar, grosso modo, que a animação é de natureza analítica, ao contrário da imagem real, que tem uma abordagem mais sintética do mundo, ainda que, entre as duas tendências haja toda uma enorme variedade de declinações.

A filmagem de imagens reais tem uma relação mais mimética com seu sujeito, porque reproduz o movimento através de um processo sensitométrico (resposta à luz de uma superfície fotossensível, como por exemplo uma placa fotográfica), e mecânico (sequência de imagens e obturação).

 

Em animação, os cenários, os personagens e os ambientes sonoros são normalmente construídos na sua totalidade, até aos mínimos detalhes. O autor tem de definir o conjunto dos parâmetros visuais e acústicos: ritmo, cores, sons, música, formas, materiais, luz, que são simultaneamente as suas ferramentas artísticas, e que geram uma série de processos retóricos e figuras de estilo: metáforas, símbolos, figuras alegóricas, dramatizações, ornamentos, oxímoros, hipérboles, substituições, efeitos de citação, rupturas gráficas ou discursivas, espaços paradoxais, efeitos rítmicos, ironia, paródia…

Uma paleta alargada de tropos que geram uma multiplicidade de desvios da realidade. Mas é para melhor expressar o real, ou para o reexpressar com mais força e expressividade.

 

Sobre a metáfora, o poeta francês Pierre Reverdy acrescenta: quanto mais distantes e concretas forem as relações entre duas realidades postas juntas, mais a imagem será forte, mais será a sua força emocional e realidade poética.

Isso explica por que, na maioria das vezes, a animação se afasta espontaneamente do naturalismo e mais prontamente retrata universos fantásticos, oníricos ou burlescos. A animação torna-se uma formidável matriz de imagens insólitas e líricas, em permanentes e renovadas descobertas visuais.

A animação recorre tradicionalmente ao processo de transformação. A transformação opera nas novas formas de poesia literária do século XX: o dadaísmo, o surrealismo, o futurismo, o realismo poético ou o OuLipo (*), assim como nas vanguardas artísticas que também utilizam a metamorfose e a alteração da percepção: cubismo, letrismo, surrealismo, futurismo, arte óptica, Pop art, novo realismo…

 

(*) (Oficina de Literatura Potencial – corrente literária surgida nos anos 60 do séc. passado, formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura – actualmente também há uma OuAnpo – Oficina de Animação Potencial).

 

Mas a animação não é apenas a superfície de transformação do espaço e das figuras (como numa pintura cubista ou expressionista), ela é de natureza temporal. Ela opera, de forma lúdica, múltiplos efeitos sobre o movimento que abranda, imobiliza, acelera, torna-se espasmódico ou anda para trás.

 

Entre o transformado, o motivo inicial, e o transformando, o motivo final, estabelece-se uma relação, que é, por definição, simbólica (no sentido de uma relação por semelhança ou convenção entre dois objetos, conceitos, imagens, etc.). O animador cria uma associação de ideias entre os dois termos da transformação, revelando intenções, obsessões ou mesmo um processo inconsciente como no caso de um exercício de improvisação, por exemplo.

 

Pensamos imediatamente na montagem de Eisenstein, que procedia à justaposição, por corte ou encadeado, de duas imagens, só que neste caso, a transição é gráfica e orgânica, e inscreve uma forma de fluidez nos objetos e nas personagens (e mesmo nos cenários), que faz com que o seu estatuto permaneça continuamente incerto, instável, equívoco: um personagem muda de sexo, um objeto desmultiplica-se, um cenário é invertido… O estilo do animador e seus partis-pris gráficos, irão gerar conotações adicionais a esses símbolos recém-criados pela transformação animada: o desenhador pode passar de um estilo despojado a um estilo grotesco, expressivo ou geométrico, e vice-versa.

Trata-se de facto de um pensamento em movimento que se desvela diante de nossos olhos.

O termo cinema de animação foi proposto e utilizado na década de 1950 por André Martin, que queria diferenciar as curtas-metragens de animação de autor (Norman Mclaren, Jiří Trnka…), exibidas no Festival de Cinema de Cannes, dos “desenhos animados” produzidos nos estúdios americanos.

Começaram desde então debates sem fim sobre as designações e definições. Desde logo por partilharem os mesmos suportes de difusão, o cinema de animação parece estar englobado no cinema, na sua acepção genérica, e parece utilizar os mesmos códigos (mise en scène, enquadramento, ponto de vista, montagem, narração,), etc.

 

É, portanto, comum assistir a um filme de animação como a qualquer outro tipo filme, ficção, documentário ou experimental, tanto mais que estas diferentes categorias não têm cessado de se hibridar ao longo do tempo, esbatendo as fronteiras entre essas classificações tradicionais.

Por questões de rentabilidade (e de atenção ao espectador), as longas-metragens de animação inscrevem-se sobretudo no domínio da narrativa (contar histórias), enquanto as curtas-metragens dão preferencialmente espaço à experimentação singular.

 

Se o cinema de animação tem por vezes categorias próprias nos festivais ou nas cerimónias de premiação (como por exemplo os Óscar, os Magritte, ou os César), é sobretudo por razões estratégicas e económicas.

Por outro lado, se a animação tem os seus próprios festivais, é certamente porque ela tem verdadeiras especificidades.

 

É verdade que o cinema de animação é cinema, mas cinema com enormes possibilidades expressivas e poéticas, seja quando se apropria da realidade de uma forma muito documentada, com uma forte temática social, seja quando convoca os imaginários mais fantásticos (entendemos aqui a noção de poesia no sentido do trabalho sobre a linguagem, tanto verbal quanto visual ou plástica).

 

E é aqui que o cinema de animação se reencontra com a animação, no sentido original e pré-cinematográfico do termo.